domingo, 26 de abril de 2009

Sentir em Luanda

Nota: Este texto foi escrito no ano de 2001, em Angola.
Anoiteceu pouco antes.
O trânsito, invariavelmente, estava de loucos àquela hora e, para completar o ramalhete, S. Pedro chorava com força.
Do céu, enérgicos relâmpagos e autênticos baldes de água empurravam os pedestres e paravam os carros em filas intermináveis.
Sentado no banco de trás, decidira-me aproveitar a espera obrigatória para me refugiar nos pensamentos. Em quaisquer uns, sem tema pré-definido.
Encostado ao tapume que escondia as obras dentro da rotunda, com os pés descalços mergulhados na água que corria, apoiava-se nas duas pequenas muletas que o sustentavam.
De figura frágil, camisa rasgada, não teriam passado mais de oito anos por ele. Uma criança que num outro lar mal teria autorização para atravessar a rua sozinha. Não era o seu caso!
Era uma criança, mas era também pobre e vivia numa capital Africana.
Estava sozinho sob a chuva que o inundava por entre carros parados.
Primeiro senti um aperto no coração. Sempre fui um apaixonado por crianças, mas aquele cenário enterneceria certamente o mais insensível ser.
Por entre os carros chamei-o.
A nota que lhe pus na mão, que tão pouco significava para mim, foi apenas acessória neste episódio.
Para ele, criança de cara escorrendo água, significou – senti-o – um gesto de preocupação, um pouco de carinho, talvez, numa vida madrasta.
Para mim um simples obrigado que recebi, foi recompensa maior.
Foi sentir que vivo, que o coração chora, que ri, que não se deixou adormecer.
Não foi ser magnânimo, foi apenas ser humano, condição da qual cada vez mais nos distanciamos.

DC

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